quarta-feira, 30 de outubro de 2013

As polainas do Senhor Pierre

Quando desci para comprar o jornal, o Quartier Latin estava ainda embaciado, com aquele jeito outonal que nos faz desejar mais algumas horas de bom sono.
 
Minutos depois, ao estender a mão para pagar o exemplar do Le Figaro, dei por mim a admirar as polainas do Senhor Pierre. De imediato, fiquei na dúvida se o que ficara perdido pelos séculos XVIII e XIX seria o bom gosto do meu vizinho ou o meu olhar.
 
Ali estavam elas, de couro, com o objetivo de proteger os sapatos do cavalheiro, belas, remetendo a imaginação para os romances e os poemas que brotaram na Belle Èpoque, um período delimitado por intensas evoluções culturais que se expressaram em modernos processos de refletir e nutrir o dia-a-dia, tanto em França quanto no Brasil. Uma época áurea, constelada, em estética, em inovação, em talento literário. Um período em que a mente pervagava pelas páginas de Henri Murger, Baudelaire, Balzac, Anatole France, Émile Zola, Verlaine, Mallarmé, Oscar Wilde, Rimbaud, Olavo Bilac, Machado de Assis, Martins Fontes, Coelho Netto, e pelas telas de Alfons Mucha, Toulouse-Lautrec, Edvard Munch, James Whistler, Georges-Pierre Seurat, Paul Sérusier, Paul Gauguim, Pierre Bonnard, Edouard Vuillard, Paul Ranson, Maurice Denis. Todos, artistas que uniram com a sua vocação: Paris ao Rio de Janeiro. Imensos, em sua infinita qualidade.
 
A Belle Èpoque parisiense teve o começo do seu fim aquando do naufrágio do Titanic, a 14 de abril de 1912, já a brasileira foi um pouco mais tarde, no começo dos anos 30, no século XX. E, agora, em pleno século XXI, no Bairro Latino, em Paris, tenho uma reminiscência daquele ciclo áureo.
 
Volto a cabeça para todos os lados, procuro vestígios, outros, da intensidade, da cor e da luz derramadas na pintura dos mestres citados, tento perceber nos escaparates algum indício das páginas douradas, tento divisar novos resplendores naquele bairro e naquela cidade que enamoro todos os dias, porém, encontro apenas, centenas de pessoas, das mais diversas nacionalidades, ávidas por um registo fotográfico, a namorar as realidades antigas e distintas, porém, todas, a trajar a moda confusa da atualidade, as cores banais, as formas esdrúxulas, de mau corte, péssimo gosto e pior acabamento.
 
Quando dou por mim, estou novamente a admirar as polainas do Senhor Pierre e, ele, a meu lado, a ajeitar dois volumes de Hugo, de recente edição, e a soltar dois dedos de prosa com a Senhora da mercearia, simpática mulher, roliça, de alvos dentes e de olhar penetrante. Ali há caso. Faz ela bem, o Senhor Pierre é um homem de bom gosto e eu de olhar atento e saudosista. Faço um gesto de despedida e ele, em tom sarcástico lembra-me Baudelaire:
 
"É preciso estar sempre embriagado. Eis aí tudo: é a única questão. Para não sentirdes o horrível fardo do Tempo que rompe os vossos ombros e vos inclina para o chão, é preciso embriagar-vos sem trégua.
 
Mas de quê? De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira. Mas embriagai-vos.
 
E se, alguma vez, nos degraus de um palácio, sobre a grama verde de um precipício, na solidão morna do vosso quarto, vós acordardes, a embriaguez já diminuída ou desaparecida, perguntai ao vento, à onda, à estrela, ao pássaro, ao relógio, a tudo que foge, a tudo que geme, a tudo que anda, a tudo que canta, a tudo que fala, perguntai que horas são; e o vento, a onda, a estrela, o pássaro, o relógio, responder-vos-ão: 'É hora de embriagar-vos! Para não serdes os escravos martirizados do Tempo, embriagai-vos: embriagai-vos sem cessar! De vinho, de poesia ou de virtude, à vossa maneira'."
 
A minha resposta não tardou, embriagada e poética, em versos de Bilac:

“"Ora (direis) ouvir estrelas! Certo
Perdeste o senso!" E eu vos direi, no entanto,
Que, para ouvi-las, muita vez desperto
E abro as janelas, pálido de espanto...

E conversamos toda noite, enquanto
A Via Láctea, como um pálio aberto,
Cintila. E, ao vir o sol, saudoso e em pranto,
Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: "Tresloucado amigo!
Que conversas com elas? Que sentido
Tem o que dizes, quando não estão contigo?"

E eu vos direi: "Amai para entendê-las!
Pois só quem ama pode ter ouvido
Capaz de ouvir e de entender estrelas".”
 
 
Rui Calisto

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